Abordagem
matemática evidencia as diferenças entre os discursos de quem tem mania ou
esquizofrenia.
CARLOS FIORAVANTI |
Edição 194 - Abril de 2012
© FONTE: ICE / FOTO:
LEO RAMOS
Para
os psiquiatras e para a maioria das pessoas, é relativamente fácil diferenciar
uma pessoa com psicose de quem não apresentou nenhum distúrbio mental já
diagnosticado: as do primeiro grupo relatam delírios e alucinações e por vezes
se apresentam como messias que vão salvar o mundo. Porém, diferenciar os dois
tipos de psicose – mania e esquizofrenia – já não é tão simples e exige um
bocado de experiência pessoal, conhecimento e intuição dos especialistas. Uma
abordagem matemática desenvolvida no Instituto do Cérebro da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) talvez facilite essa diferenciação,
fundamental para estabelecer os tratamentos mais adequados para cada
enfermidade, ao avaliar de modo quantitativo as diferenças nas estruturas de
linguagem verbal adotadas por quem tem mania ou esquizofrenia.
A
estratégia de análise – com base na teoria dos grafos, que representou as
palavras como pontos e a sequência entre elas nas frases por setas – indicou
que as pessoas com mania são muito mais prolixas e repetitivas do que as com
esquizofrenia, geralmente lacônicas e centradas em um único assunto, sem deixar
o pensamento viajar. “A recorrência é uma marca do discurso do paciente com
mania, que conta três ou quatro vezes a mesma coisa, enquanto aquele com
esquizofrenia fala objetivamente o que tem para falar, sem se desviar, e tem um
discurso pobre em sentidos”, diz a psiquiatra Natália Mota, pesquisadora do
instituto. “Em cada grupo”, diz Sidarta Ribeiro, diretor do instituto, “o
número de palavras, a estrutura da linguagem e outros indicadores são
completamente distintos”.
Eles
acreditam que conseguiram dar os primeiros passos rumo a uma forma objetiva de
diferenciar as duas formas de psicose, do mesmo modo que um hemograma é usado
para atestar uma doença infecciosa, desde que os próximos testes, com uma
amostra maior de participantes, reforcem a consistência dessa abordagem e os
médicos consintam em trabalhar com um assistente desse tipo. Os testes
comparativos descritos em um artigo recém-publicado na revista PLoS One
indicaram que essa nova abordagem proporciona taxas de acerto da ordem de 93%
no diagnóstico, enquanto as escalas psicométricas hoje em uso, com base em
questionários de avaliação de sintomas, chegam a apenas 67%. “São métodos
complementares”, diz Natália. “As escalas psicométricas e a experiência dos
médicos continuam indispensáveis.”
“O
resultado é bastante simples, mesmo para quem não entende matemática”, diz o
físico Mauro Copelli, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), que participou
desse trabalho. O discurso das pessoas com mania se mostra como um emaranhado
de pontos e linhas, enquanto o das com esquizofrenia se apresenta como uma
reta, com poucos pontos. A teoria dos grafos, que levou a esses diagramas, tem
sido usada há séculos para examinar as trajetórias pelas quais um viajante
poderia visitar todas as cidades de uma região, por exemplo. Mais recentemente,
tem servido para otimizar o tráfego aéreo, considerando os aeroportos como um
conjunto de pontos ou nós conectados entre si por meio dos aviões.
“Na
primeira vez que rodei o programa de grafos, as diferenças de linguagem
saltaram aos olhos”, conta Natália. Em 2007, ao terminar o curso de medicina e
começar a residência médica em psiquiatria no hospital da UFRN, Natália notava
que muitos diagnósticos diferenciais de mania e de esquizofrenia dependiam da
experiência pessoal e de julgamentos subjetivos dos médicos – os que
trabalhavam mais com pacientes com esquizofrenia tendiam a encontrar mais casos
de esquizofrenia e menos de mania – e muitas vezes não havia consenso. Já se
sabia que as pessoas com mania falam mais e se desviam do tópico central muito
mais facilmente que as com esquizofrenia, mas isso lhe pareceu genérico demais.
Em um congresso científico em 2008 em Fortaleza ela conversou com Copelli, que
já colaborava com Ribeiro e a incentivou a trabalhar com grafos. No início ela
resistiu, por causa da pouca familiaridade com matemática, mas logo depois a
nova teoria lhe pareceu simples e prática.
Para
levar o trabalho adiante, ela gravou e, com a ajuda de Nathália Lemos e Ana
Cardina Pieretti, transcreveu as entrevistas com 24 pessoas
(oito com mania,
oito com esquizofrenia e oito sem qualquer distúrbio mental diagnosticado), a
quem pedia para relatar um sonho; qualquer comentário fora desse tema era
considerado um voo da imaginação, bastante comum entre as pessoas com mania.
“Já
na transcrição, os relatos dos pacientes com mania eram claramente maiores que
os com esquizofrenia”, diz. Em seguida, ela eliminou elementos menos
importantes como artigos e preposições, dividiu a frase em sujeito, verbo e
objetos, representados por pontos ou nós, enquanto a sequência entre elas na
frase era representada por setas, unindo dois nós, e assinalou as que não se
referiam ao tema central do relato, ou seja, o sonho recente que ela pedira
para os entrevistados contarem, e marcavam um desvio do pensamento, comum entre
as pessoas com mania.
Um
programa específico para grafos baixado de graça na internet indicava as
características relevantes para análise – ou atributos – e representava as
principais diferenças de discurso entre os participantes, como quantidades de
nós, extensão e densidade das conexões entre os pontos, recorrência,
prolixidade (ou logorreia) e desvio do tópico central. “É supersimples”,
assegura Natália. Nas validações e análises dos resultados, ela contou também
com a colaboração de Osame Kinouchi, da Universidade de São Paulo (USP) em
Ribeirão Preto, e Guillermo Cecchi, do Centro de Biologia Computacional da IBM,
Estados Unidos.
Resultado:
as pessoas com mania obtiveram uma pontuação maior que as com esquizofrenia em
quase todos os itens avaliados. “A logorreia típica de pacientes com mania não
resulta só do excesso de palavras, mas de um discurso que volta sempre ao mesmo
tópico, em comparação com o grupo com esquizofrenia”, ela observou.
Curiosamente, os participantes do grupo-controle, sem distúrbio mental
diagnosticado, apresentaram estruturas discursivas de dois tipos, ora
redundantes como os participantes com mania, ora enxutas como os com
esquizofrenia, refletindo as diferenças entre suas personalidades ou a
motivação para, naquele momento, falar mais ou menos. “A patologia define o
discurso, não é nenhuma novidade”, diz ela. “Os psiquiatras são treinados para
reconhecer essas diferenças, mas dificilmente poderão dizer que a recorrência
de um paciente com mania está 28% menor, por mais experientes que sejam.”
“O
ambiente interdisciplinar do instituto foi essencial para realizar esse estudo,
porque eu estava todo dia trocando ideias com gente de outras áreas. Nivaldo
Vasconcelos, um engenheiro de computação, me ajudou muito”, diz ela. O
Instituto do Cérebro, em funcionamento desde 2007, conta atualmente com 13
professores, 22 estudantes de graduação e 42 de pós, 8 pós-doutorandos e 30
técnicos. “Vencidas as dificuldades iniciais, conseguimos formar um grupo de
pesquisadores jovens e talentosos”, comemora Ribeiro. “A casa em que estamos
agora tem um jardim amplo, e muitas noites ficamos lá até as duas, três da
manhã, falando sobre ciência e tomando chimarrão.”
Artigo
científico
MOTA,
N.B.
et al. Speech graphs provide
a quantitative measure of
thought disorder
in psychosis. PLoS ONE
(no prelo).
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